Esquecidas por Deus, eternizadas por Aquilino
Incontornáveis na geografia sentimental e literária de Aquilino Ribeiro, as Terras do Demo que o escritor batizou são agora o melhor chamariz turístico dos concelhos de Vila Nova de Paiva, Moimenta da Beira, Sernancelhe e Aguiar da Beira. Entre penedos e serranias, ermidas e solares há uma “terra de que ninguém faz ideia” mas que vale “uma volta pelo Chiado”. Venha descobri-la pelos passos de Aquilino.
Chegar às Terras do Demo já não é tão difícil como nos tempos de Aquilino Ribeiro, quando a viagem por “lanços perigosos e ziguezagues mortais” mais parecia “o caminho marítimo para a Índia”. Na altura, “largava-se de Viseu pela tardinha” e ia-se “para o cabo do mundo” mas agora meia hora basta para chegarmos da capital de distrito a Vila Nova de Paiva, uma das portas deste território “por onde “nem Cristo” nem “el-Rei” passaram.
É nesta vila, outrora chamada de Barrelas, que decorre a ação d`O Malhadinhas, almocreve fala-barato que, meio a sério, meio a brincar, gabava-se das sete maravilhas da povoação, como uma cruz mudéjar que ainda hoje pode ser vista na Igreja Matriz de Vila Nova de Paiva. Não muito longe, na aldeia de Queiriga, há outra referência na obra de Aquilino que vale a pena conhecer: uma antiga estação florestal repleta de “viçosas geiras de sementeio, viveiro de plantas, horta e pomar” entretanto transformada em Parque Botânico Arbutos do Demo.
A meio caminho entre Vila Nova de Paiva e Moimenta da Beira, em Soutosa, fica outro ponto incontornável da geografia sentimental do escritor, a Fundação Aquilino Ribeiro – casa-museu e biblioteca. Foi nesta aldeia que o autor passou parte da infância e encontrou inspiração para muitas das suas obras, passando a trazê-la “nos poros, no sangue e no cérebro”. A verdadeira natureza das gentes e dos animais nunca esteve tão perto: “A visita matinal que faço a estas queridas e prosaicas coisas, com as rolas a ensaiar, após a traviata sobre o pinhal, suas sarabandas de amor, trocando o bom dia com os jornaleiros, vale uma volta pelo Chiado ao cair da tarde”.
O berço, a fé e a história
Depois de Soutosa é tempo de partir à descoberta da serra da Lapa, que tanto marcou Aquilino Ribeiro. Desde logo porque foi numa das suas aldeias – Carregal, no concelho de Sernancelhe – que o escritor nasceu. Da casa natal recordou o “grande e desmazelado pátio fidalgo” (agora mais limpo e ordenado) e os ciprestes vizinhos “batidos pelo vento que não gemiam como as demais gentes”. “Eu olhava para eles, assim mudos, fixos e sobranceiros, e recebia deles uma lição de altitude e firmeza”, escreveu em Cinco Réis de Gente. Se passar por lá não deixe de visitar a igreja matriz quinhentista da povoação e, já agora, o mosteiro cisterciense do povo vizinho de Tabosa.
Os estudos primários foram feitos no colégio da Lapa com “pulmões lavados pelos mil metros de altitude, carne de cabra de manhã, ao meio-dia e à noite e palmatoadas pela medida grande, louvado seja Deus, a qualquer hora”. Já nessa altura o santuário da Lapa era palco de peregrinações de meio Portugal, atraído pela história da santa que apareceu a uma menina pastora e cuja imagem passou a ter abrigo entre os enormes rochedos de uma gruta. Dos muitos ex-votos mais antigos sobressai um crocodilo embalsamado, supostamente trazido da Índia por um devoto que escapou à morte depois de uma luta com o animal.
Quem descer a serra no sentido de Aguiar da Beira (a cerca de nove quilómetros da Lapa) deve aproveitar para conhecer o centro histórico da vila e daí seguir para norte rumo a Sernancelhe. Aqui merecem visita a igreja matriz do século XII, o que resta do castelo de Mumadona e uma das muitas casas senhoriais que povoam a localidade. Se passar pela biblioteca também irá encontrar o busto de um dos mais famosos filhos do concelho: Aquilino Ribeiro, pois claro.
A terra toda na Beira Alta
Seguindo o curso do Távora chega-se à Vila da Ponte e à Barragem de Vilar, que mudou para sempre a paisagem desta região. Aquilino morreu dois anos antes da inauguração mas, se fosse vivo, haveria de querer subir até ao miradouro de Nossa Senhora das Necessidades para admirar o grande lago que se agora espraia entre montes e vales. Daí a Freixinho (morada espiritual da sua tia Custódia) é um pulo e o mesmo acontece até à bonita Vila da Rua, onde sobressaiu uma fonte e um tanque que o escritor evocou no livro a Via Sinuosa: “De bordo em curvas e segmentos, alternantes, de rectas, o tanque era, de par com o lineamento da escaleira que poucos passos dali conduzia à capela, duma ordenança mais harmoniosa que as rendas por minha mãe tecidas”.
A mesma estrada leva até às ruínas do Convento de São Francisco, monumento que ocupou posição central na narrativa de Aquilino: “Ninguém passava que a torre não chamasse com seus olhos vazados, obessos, e não admirasse depois a albergaria, cujas frestas e balcão de balaústres alevantavam ali uma aragem de nobreza antiga”. A esta altura já o pôr do sol nos lembrava que o dia ia longo mas quem quiser fazer uma incursão mais para norte, a caminho do Douro, não deve deixar de conhecer Arcozelo, “a terra mais mimosa de Moimenta” segundo Aquilino e a capela românica de São Pedro das Águias, na Granjinha, já em terras de Tabuaço.
O nosso itinerário termina já ao cair da noite em Moimenta-da-Beira, vila ancestral que “reclina-se numa encosta, tão branda, que o casario a desce quase imperceptivelmente”. Para outros passeios ficou Lamego, Viseu, Romarigães, Beja ou Lisboa, por onde Aquilino também andou e deixou marca. Mas agora é tempo de dar razão ao mestre: “A Beira Alta não tem símile no Mundo. Em poucas dezenas de quilómetros reproduz-se a terra toda: amenidade e bravura, a colina e o vale, a civilização e a selvajaria”.
Terras do Demo - Vila Nova de Paiva, Moimenta da Beira, Sernancelhe e Aguiar da Beira
Distância de Lisboa: 330 km (Vila Nova de Paiva)
Percurso recomendado: A1, IP3, N229, N329
Custo das portagens: 15,05€
Distância do Porto: 160 km (Vila Nova de Paiva)
Percurso recomendado: A1, A25, N229, N329
Custos das portagens: 8,95€