Um passeio por território caxineiro
O bairro das Caxinas, em Vila do Conde, serve de ponto de partida e de chegada a esta caminhada que tem o mar e o rio como principais companhias. São perto de dez quilómetros e um par de horas entre praias, barcos e igrejas, pescadores, mulheres vestidas de negro e devotos. O Lifecooler meteu os pés a caminho, sentiu a maresia e ainda teve direito a um pregão: “Bind´ó peixe! Binde q´é fresquinho!".
Em Caxinas todos os caminhos partem e vão dar à Igreja de Nosso Senhor dos Navegantes por isso não podia haver melhor início para este percurso circular que, quase dez quilómetros depois, há de terminar no mesmo local, bem no extremo norte do concelho de Vila do Conde. O templo, em forma de barco, é o ponto mais simbólico de um bairro que viu partir muitos homens para a pesca do bacalhau, na Terra Nova, e hoje ainda faz da pesca artesanal e costeira o principal sustento.
Falar das Caxinas é também falar da praia dos Barcos, mesmo em frente à igreja, onde caminhamos mar adentro por um pontão (antigo portinho) que é um autêntico miradouro, com o cruzeiro das Caxinas em primeiro plano e o recorte da costa no horizonte, marginada pela Avenida Infante D. Henrique. É por lá que seguimos em direção a sul, com passagem pelo Memorial aos Náufragos, composto por dezenas de cruzes em ferro, entrelaçadas, configurando parte de um barco,
É por aqui que param muitas mulheres vestidas de negro (mães e esposas de quem perdeu a vida no mar), quem sabe carpindo as mágoas. Uma delas, antiga peixeira, evita as fotografias mas não a conversa: “Há uns tempos esta praia estava cheia de sargaço. Agora, olhe para ali, é só areia e barracas”. “E pregões? Lembra-se de alg…”. A nossa pergunta ainda ia a meio e já a resposta estava na ponta da língua: “Bind`ó peixe! Binde q´é fresquinho!". Íamos jurar que os olhos marejavam-lhe de emoção.
Mais à frente, junto ao restaurante Caximar, encontramos outro local carregado de simbolismo - a estátua de homenagem aos pescadores de Vila do Conde - e, logo depois, a Casa e o Bairro dos Pescadores. As primeiras residências, pobres e em madeira, já lá não moram mas manteve-se uma pequena capela que dá corpo à enorme devoção destas paragens.
Do mar ao rio
Continuando caminho, sempre com o Atlântico por companhia, passamos pela Quinta do Engº Carvalho, nome herdado do antigo proprietário da Fábrica Mindelo (uma das maiores indústrias têxteis da região no século passado) que ali viveu. São vários hectares de pinhal, vegetação e pequenas dunas, guardados por um longo muro de granito e cuja ausência de construção contrasta com o betão da restante Avenida do Brasil, redesenhada por Siza Vieira aquando do projeto Polis. Mesmo assim, esta zona ainda guarda alguns dos elegantes edifícios do antigo Bairro Balnear (agora rua Bento de Freitas), onde chegaram a viver os pintores Sonya e Robert Dalaunay.
Uns metros depois, entre a Praia do Turismo e a Praia Azul, a via pedonal afasta-se ligeiramente da avenida, ficando separadas por um sistema dunar primitivo recentemente requalificado. Este só termina junto ao Forte de São João Baptista, construído no século XVI para vigia e defesa da costa. Hoje, acolhe um hotel de charme (encerrado entre 1 de julho e 31 de agosto) e uma discoteca que promete animar as noites de Vila do Conde madrugada fora.
Depois do obelisco que lembra a primeira tentativa de desembarque das tropas liberais, chegamos à Capela de Nossa Senhora da Guia, a mais antiga da cidade (origens no século X), construída entre o mar e a foz do rio Ave. Local de romaria das gentes do mar, também dá nome à praia vizinha, eleita pelo poeta Ruy Belo durante a sua estadia em Vila do Conde, terra que o poeta disse ser “o lugar onde o coração se esconde”.
Por esta altura o mar fica para trás e o nosso passeio (que vai, sensivelmente, nos 2,5 kms) passa a ter a companhia do rio, por agora paralelo à Avenida Marquês Sá da Bandeira. É lá que fica, por exemplo, o Parque do Castelo, zona de lazer onde outrora funcionou a seca do bacalhau, e o Centro de Monotorização e Interpretação Ambiental, situada na antiga Casa do Risco. Já depois das piscinas, encontramos o Cais dos Assentos que dá abrigo aos barcos dos pescadores e ao Memorial dos Antigos Combatentes do Ultramar. Neste ponto, o percurso flete para norte, pela Avenida Júlio Graça, mas se tiver tempo (e pernas) poderá fazer um desvio e passar pela Capela do Socorro e pela Alfândega Régia, junto a réplica da Nau Quinhentista, mas nessa altura já estará em terrenos de outro passeio, o Roteiro do Centro Histórico.
Natureza, cultura e fé
Regressando ao percurso original, chegamos ao Jardim Júlio Graça, espécie de corredor verde da cidade cuja fase inicial remonta a finais do século XIX e que, agora, recebe todo o tipo de feiras, desde o artesanato à agricultura, passando pela gastronomia. A mesma avenida também serve de morada a alguns dos mais belos edifícios da cidade, como o Palacete Melo (também conhecido por colónia balnear) ou o antigo Casino de Vila do Conde (atual Centro Municipal de Juventude).
A partir daqui, o percurso torna-se um pouco menos intuitivo e, na dúvida, o melhor é ir pedindo indicações para não se perder. Primeiro pergunte pela Biblioteca Municipal José Régio (acesso pelas avenidas Baltasar de Couto e José Sousa Pereira), um dos principais espaços culturais da cidade, juntamente com o vizinho Teatro Afonso Sanches e com o Teatro Municipal (também não muito longe), palco do conhecido evento Curtas de Vila do Conde. Depois procure um muro de pedra (na Avenida Joaquim Pacheco Novais) porque do lado de lá há de encontrar a Capela de Santa Catarina, templo que remonta ao século XV, atualmente algo degradado. Coisa rara em Vila do Conde.
Continuando pelas ruas Dom João de Castro e Eça de Queirós chegamos à rua dos Benguiados, nome adequado a esta via que, outrora, os peregrinos tomavam em direção a Santiago de Compostela. Agora, leva os alunos da cidade às escolas desta zona, o que ajuda a explicar o monumento que encontramos pelo caminho (numa rotunda) em homenagem à Educação e ao Professor.
O nosso passeio aproxima-se a passos largos do fim uma vez que voltamos a entrar nas Caxinas. Aqui visitamos o Parque Urbano João Paulo II e o Centro de Atividades, desenhados pelo arquiteto Siza Viera, e ainda espreitamos as capelas do Santíssimo Sacramento e da Senhora da Boa Morte antes de regressarmos à igreja do Nosso Senhor dos Navegantes. Três exemplos da devoção dos caxineiros (e dos vilacondenses), para quem a fé é tão grande quanto o mar.
Nelson Jerónimo Rodrigues 2016-06-29