Um chouriço em versão «light»
«Enchido cilíndrico em forma de ferradura com cerca de 20 cm a 25 cm de comprimento e de cor castanho-amarelada. A tripa, sem rupturas, apresenta-se aderente à massa; as duas extremidades são ligadas por um fio de algodão». Decreto-lei que classifica a alheira de Mirandela com a Indicação Geográfica Protegida
A ser verdade a lenda, devemos mais alguma coisa à Inquisição para além do atraso do reino, do mergulho no obscurantismo e do esmagamento do pensamento livre. Produto de uma desobediência cívico-gastronómica, a alheira, saboroso enchido, foi, supostamente, inventada pelos cristãos-novos para se eximirem à carne de porco de que a sua secreta crença os mandava abster. Dizem os historiadores que o episódio é tão verdadeiro como D. Afonso Henriques ter batido na mãe ou o Infante D. Henrique ter feito uma escola de marinhagem em Sagres.
O que passa à posteridade, e com todas as honras, é este produto notável da cozinha popular portuguesa. Os camponeses transmontanos que o inventaram tinham outras preocupações que não o respeito pelas leis talmúdicas: precisavam de conservar excedentes do galinheiro ou da caça para o resto do ano. Daí que a alheira incorpore, em vez dos produtos característicos dos restantes fumeiros, mais gordos e agressivos para o fígado, carne de aves, pão, azeite, banha, alho e colorau. E, para desmentir a lenda, alguma carne ou gordura de porcino, que em hora de aperto não há lugar para fundamentalismos.
CURIOSIDADES
Invenções – Em Mirandela, ou por todo o planalto transmontano, a alheira é um produto genuíno de que nos podemos orgulhar. E que a cozinha pós-moderna, nos seus delírios criativos, já começou a desconstruir, criando obras tão insólitas como a «alheira de mel e noz», de bacalhau ou dessa aberração gramatical chamada «frutos do mar».
Toponímia – Se o comum das pessoas associa as palavras «alheira» e «Mirandela», ainda que haja alheiraslegítimas feitas em muitas outras terras, fica o leitor a saber que há uma povoação chamada ... Alheira. Fica no concelho de Barcelos, onde não consta que estes enchidos se produzam e tem honras de sede de freguesia. Tem 1.100 habitantes e nove quilómetros quadrados de área. Já agora, tem uma localidade aparentada, pelo menos foneticamente, as Alhadas, nos arredores da Figueira da Foz.
Bendito frigorífico – Se os antigos recorriam ao fumeiro como forma garantida de conservar a comida, a moderna tecnologia faz ainda melhor: se for a Trás-os-Montes e trouxer umas dúzias de alheiras, saiba que pode congelá-las e guardá-las por uns tempos. O sabor, esse, em nada se ressente.
Boas companhias – Aqui está um produto que pode ser comido das mais diversa formas, ou não fosse fruto de um saber ancestral. Há quem o sirva como aperitivo, cortado às rodelas. Como prato principal, nos tascos de beira de estrada e nos restaurantes populares vem com ovo estrelado e batata frita, sendo, por regra, um dos pratos mais baratos da ementa. Finalmente, para lá do Marão, onde ainda se come como deve ser, apresenta-se grelhada, ou assada em lume brando, acompanhada por batata cozida com um fio de azeite, e legumes diversos, incluindo grelos.
INFORMAÇÕES
Por onde iniciar a busca da alheira perdida? Opções não faltam. Se está em Miranda do Douro, retenha os nomes de dois restaurantes: «Gabriela», em Sendim e «Balbina», na sede do concelho. Se está em Mirandela, pode sempre informar-se no posto de turismo no que respeita produtores mas, se for par comer de faca e garfo, vá ao restaurante «O Grês», na margem direita do Tua, no enfiamento da ponte medieval.