Ver a bola entre golos de gin e penaltis de bagaço
Noventa e cinco anos depois da fundação, o emblemático Estádio, no Bairro Alto, reabriu portas com novos donos e algumas novidades. Continua um café à moda antiga, mas agora o futebol vê-se em alta definição e a velhinha juke box deu lugar a um palco e a leds coloridos. Gin ou bagaço, cool ou retro, Ronaldo ou Eusébio? Aqui entram todos em campo mas quem ganha é a cidade que mantém uma casa centenária.
Das muitas vidas e outras tantas “tribos” que o Bairro Alto teve no último século, todas ou quase todas passaram pelo Estádio, a histórica casa da Rua de São Pedro de Alcântara que conseguia sentar lado a lado noctívagos, intelectuais e clientes da velha guarda, entre tantos outros. Seja pela localização (às portas do Bairro Alto), pelo ambiente castiço ou pela cerveja barata (ou, provavelmente, por tudo isso), a verdade é que a casa foi resistindo ao passar dos anos e à maioria dos clientes pouco importava se a televisão era pequena ou se o fumo ficava ainda mais cerrado que o rosto de alguns empregados.
Assim que se soube do encerramento, no início do ano, quase caiu o Carmo e a Trindade. Uns queixavam-se de ficar sem sítio para ver a bola ou fazer o aquecimento para uma noite de copos, outros adivinhavam um hotel de luxo ou uma multinacional da restauração para o local. Mas afinal, o Estádio deu lugar… ao Estádio. Em três meses, mudaram os donos (é agora uma sociedade de três amigos, antigos clientes), pintaram-se as paredes, arranjaram-se as casas de banho e trouxeram-se algumas novidades.
A que salta mais à vista fica na zona do bar, agora iluminado por leds coloridos, enquanto os azulejos do balcão foram cobertos com fotografias de Lisboa a preto e branco. Um olhar mais atento dará também pela abertura de outras duas portas (uma delas para a Rua do Grémio Lusitano) e, sobretudo, pela falta da icónica Juke Box. Em vez dela, surge agora um piano (ainda por afinar) e um pequeno palco aberto a todas as artes, desde a música ao stand-up, passando pelo cinema de autor. A mesma parede é emoldurada por uma grande e moderna televisão HD que substituiu o anterior aparelho (outrora num canto, junto à entrada), entretanto substituído por um rádio antigo. Mas o essencial está lá todo, garantem os novos proprietários. Vamos ver se a essência também.
Enquanto rola a bola, bebe-se um gin e trinca-se uma tosta
De facto, as obras de remodelação não desvirtuaram o Estádio. As mesas e cadeiras continuam as mesmas, as paredes de mármore também e até o belo teto trabalhado (entretanto restaurado) continua a levar muitas cabeças a olhar para cima. Junto a ele mantém-se o letreiro que anunciava as antigas especialidades da casa – Leitaria, Pastelaria, Café e Cervejaria – e ao centro, o relógio dourado que finalmente voltou a funcionar. Mas, para isso, os novos donos precisam de subir a um escadote, de quatro em quatro horas, para dar-lhe corda. Pelo menos desde o meio dia às duas da manhã (o atual horário de funcionamento) está sempre certinho.
No mesmo lugar mantêm-se também os dois quadros do Estádio Nacional - que um antigo (e atual) cliente garante ter visto pintar há várias décadas - bem como outros dois com imagens de Lisboa antiga. Apesar de cuidadosamente limpos, não perderam a cor baça e amarelada que se foi entranhando ao longo dos anos após tantas horas de fumo. Por falar nisso, agora é proibido fumar, mas em troca há uma oferta maior de bebidas. Entre elas está uma secção de gins e outra de cocktails (cada uma com meia dúzia de opções), além de outras bebidas mais modernas, mas também os vinhos, cervejas e os tradicionais bagaços, moscatéis e vinhos do Porto. E nem falta a ginjinha, para evocar os primórdios do local, já que em 1920 (um ano antes da fundação do Estádio) a casa chamava-se Ginjinha da Sorte.
Para aconchegar o estômago, agora há alguns petiscos, como tábuas de queijo, chouriço assado, conservas, empadas e uma dezena de variedades de tostas. A ideia é chamar também os turistas (antes, poucos se atreviam a entrar) tornando o Estádio num ponto de encontro entre várias culturas e, claro, preferências clubísticas ou desportivas. Para alguns clientes da velha guarda serão sempre os “camones” mas a maioria promete recebê-los de braços abertos, a começar pelos islandeses, austríacos e húngaros que Portugal vai defrontar no Euro 2016. Afinal, tal como no futebol, não há nada como um Estádio cheio.
Nelson Jerónimo Rodrigues 2016-06-07