Da alheira
A alheira que hoje se come um pouco por todo o país repudiaria àqueles a quem se atribui a sua criação, os judeus. De facto, na sua origem, o chouriço judeu – como era conhecida – não continha porco, carne que lhes era proibida pela religião. Quando no final do século XV os judeus portugueses foram obrigados a escolher entre a conversão ao cristianismo e a saída do país, muitos escolheram ficar. Numa região onde os enchidos de porco faziam parte da dieta alimentar, diz-se que os cristãos-novos substituíram o porco por outras carnes (perdiz, galinha, vitela, coelho, etc.) e desse modo puderam ostentar também um belo fumeiro. Em Bragança e em Macedo dos Cavaleiros recebeu o nome de tabafeia, em Moncorvo de vilão e em Mirandela de alheira, provavelmente devido ao alho que entrava na sua composição. A invenção acabou adoptada por todos, com os cristãos-velhos a incluir porco na composição. Existe uma grande variedade de receitas, com ligeiras diferenças entre si relativas aos tipos de carne e de pão, aos temperos e ao tempo de fumeiro. A boa época para as alheiras é entre os meses de Dezembro a Fevereiro. Se estiver na região de Mogadouro, tenha atenção pois a palavra alheira designa um enchido bem diverso, que noutras terras é chamado chouriço de sangue ou morcela de alho!
A farinheira é também um “falso” enchido, sendo neste caso o pão substituído pela farinha, como o nome indica. Tal como estas, também actualmente o porco entra na sua feitura, sob a forma de entremeada.
Com a massa das alheiras ligeiramente modificada – mais carne, menos pão e sem alho – fazem-se os azedos, chouriços ricos cheios em tripa larga de porco, muito comum a Norte do distrito de Bragança. Em Moncorvo a palavra azedo designa um enchido bem diferente, muito pobre, feito apenas com pão e algumas das gorduras do porco.
Outros enchidos e leitão
Diz um rifão antigo que “das carnes o carneiro, das aves a perdiz e, sobretudo a codorniz; mas se o porco voara, não havia carne que lhe chegara”. De facto, do porco tudo se aproveita – da orelha aos pés, não esquecendo o sangue. Ainda no campo do fumeiro, não se esqueçam o salpicão, a chouriça, o butelo e o presunto. O mais nobre de todos, o salpicão, é feito com as melhores carnes do porco – lombo, lombinhos, febras tenras - temperadas com alho, louro, colorau e vinho. Nos presuntos, o mais famoso é o de Chaves, sendo que o de Vinhais não lhe fica atrás. Na zona do Alto Barroso (Montalegre) o chouriço leva - além de carne - farinha e nabo, sendo a chouriça o enchido que no resto do país se chama chouriço de carne (e, no Alentejo, linguiça).
Na altura da matança do porco, retiram-se as costeletas flutuantes que se partem aos bocadinhos miúdos para fazer o butelo, enchido em bexiga de porco e que constitui o prato principal do sábado de Carnaval no Nordeste Transmontano. Tradicionalmente era acompanhado com cascas ou casulas, algo que fora desta região poucos sabem o que é. São as vagens do feijão meio secas que se põem a secar ao sol durante vários dias, partidas ou não aos bocados. Guardam-se em sacos de pano e são consumidas nos dias frios de Inverno. Conforme as aldeias, o butelo recebe nomes diferentes: é butelo na região de Bragança, bulho em Mogadouro e mais a sul, em terras de Moncorvo, passa a palaio. Trindade Coelho, natural de Mogadouro, comparou o fumeiro a uma filarmónica e considerou o bulho “o baixo profundo do fumeiro”: “gosto muito dele […]. É grotesco; mas no Entrudo, com orelheira, até parece que se esgargalha no prato; a rir como um perdido para os que estão à mesa. É muito engraçado”.
Um outro enchido - o bucho de porco recheado com porco, vitela, galinha e chouriço ou apenas com carne porcina – era presença habitual no farnel dos trabalhadores rurais e dos caçadores.
Menos associado à cozinha transmontana, devido à fama dos da Bairrada, é o leitão assado. Constitui um verdadeiro pitéu de delicado sabor, dada a tenra idade em que é cozinhado, pois não deve ter mais de um mês nem nunca ter ingerido outro alimento para além do leite materno.