Descias o Douro e eu fui esperar- te ao Tejo

A Polo Norte do Quadripolaridades não conseguiu optar entre os moliceiros da ria de Aveiro, as pontes do Porto, os cacilheiros do Tejo, os barcos que ligam as ilhas dos Açores ou os barcos-casa do Alqueva. Por isso navega por mares, rios e lagos.

por Polo Norte

Os Moliceiros são os primeiros barcos a naufragar nas memórias frescas e salgadas de Verões ininterruptos da minha infância. Desde o edifício da colónia de férias, na Vagueira, ia-se rente ao muro até chegar à ponte velha e, chegados à ria, eu tinha um colete verde que não me deixava afogar. Gostava de apanhar pequenos caranguejos, lembro-me bem, nas areias movediças daquele braço de mar, para logo a seguir os soltar.

A ria ia dar ao mar, o mesmo em cujas areias procurei, noites estreladas da minha infância, fadinhas do mar, com os pés a brincar nas areias granuladas, mãos a coleccionarem conchas. Ao longe, os touros a puxarem as redes, eu nas dunas a comer gelados de água às escondidas da minha mãe porque "os de leite é que faziam bem". O farol da Barra marcava o sítio onde o mar se via mais alto, perto da Lua tão doce como as tripas com ovos moles e os meus sonhos, Julho após Julho, tinham as cores das casas da Costa Nova. As salinas chegavam sempre, rasgadas pelos narizes dos moliceiros vestidos de amarelo e encarnado e eram o ponto alto do meu Verão, neve no mar.

Nesses setembros, no regresso das férias, havia sempre coisas de adultos para tratar. A casa da avó era visitada, com uma regularidade espaçada. Era uma casa velha e escura, à sombra do Cristo Rei. Estava sempre fechada e cheirava a mofo e a um luto demorado. No regresso, quase sempre em silêncio, o cacilheiro trazia-nos de volta a casa, lento e cansado, com pessoas agastadas pelo dia de trabalho, um Tejo mais escuro que o que encontro hoje, escurecido pelos tempos de dor que tendo a não querer lembrar.

A memória do Porto no início da adolescência, a cidade com luz na alma e não nas ruas, o bucólico folclórico do Norte, a pronúncia com sabor a aletria e mexidos. Um fim de tarde passando por debaixo das pontes, tantas pontes, um ambiente de glamour, o barco como uma máquina de costura a fazer a bainha ao Douro, ponto por ponto, ou melhor, ponte por ponte, nas bermas as vinhas, costurando a manta de patchwork invicta.

Depois veio a idade adulta e a paixão. Os Açores na capital, anos mais tarde, a capital nos Açores. Descobrir o Atlântico, ilha a ilha, nos cruzeiros inter-ilhas, arquipélago de arco-íris, pote de ouro de Portugal. Ao longe o pico do Pico e as adegas, a marina do Faial e um gin acre e fresco no Peter´s, as gentes coloridas da Terceira e os moinhos de vento mais azuis na Graciosa e, finalmente, fazer de S. Jorge segunda casa, raiz do que havia de vir, fazer nascer na alma uma pequena fajã. Grupo central do meu coração.

Agora? As memórias pintadas a fresco desta maternidade, a necessidade de refúgio, virarmo-nos para dentro. Fazer as pazes com a vida que tenho, aproveitar a calmia, o silêncio, ser o ponto de partida da vida de alguém. Rumar à barragem do Alqueva, pernoitar a três como se fossemos um, fazer dos barcos-casa casas-barco e embalarmos a bebé ao colo com aquele leve agitar das águas semi-paradas, vida sem ondas. Ficaríamos para sempre aqui.

Esta crónica seria dedicada aos Moliceiros não fosse o meu coração um náufrago bandido nómada dos rios, mares e águas várias de Portugal.

A viagem continuará.

 

A autora e o blogue
Da Pólo Norte sabe-se que é psicóloga, vive em Cascais, é casada com Mámen e tem uma filha Ana, com 1 ano. Em 2008 fundou o blogue Quadripolaridades que alimenta diariamente com posts acutilantes e cheios de humor. É conhecida na blogosfera por dizer (quase) tudo o que lhe vem à cabeça. Mantém ainda o blog MãeGyver, onde relata os seus "conhecimentos de maternidade na ótica do utilizador".
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